“Ele/ela tem uma personalidade muito forte.”
Esta frase, proferida por alguns pais, encerra em si mesma diferentes significados, sendo talvez o mais relevante, a confissão implícita da incapacidade para gerir determinados desejos, assim como registos emocionais e comportamentais, do próprio filho. O “muito” é importante, pois sugere que é “maior”, ou “mais forte”, do que a generalidade das crianças.
Talvez fosse possível dizer que “é uma criança difícil”. No entanto, esta verbalização abre mais espaço para a ambivalência, ou seja, torna a admissão de incapacidade um pouco mais explícita, ao mesmo tempo que apresenta uma imagem menos idealizada da criança, situação para a qual, os pais poderão não se encontrar preparados. Num certo sentido, os pais poderiam sentir que estão a denegrir a imagem do próprio filho. Assim sendo, dizer que a criança “tem uma personalidade forte”, acalma um pouco os sentimentos de culpa e de incapacidade, latentes a qualquer relação de parentalidade, e permite menos ambivalência. Ou seja, menos dúvidas: “ele/ela é assim, tem uma personalidade muito vincada”.
Uma situação que é tipicamente utilizada para ilustrar a "personalidade forte" da criança é o facto de esta "não pedir desculpa", ou simplesmente recusar-se a fazê-lo. Pedir desculpa é, antes de mais, uma admissão de falha, ou erro, pelo que é necessária coragem para o fazer. Implica um "olhar para dentro de si próprio" que pode resultar em tristeza, ou mesmo raiva, de tal modo que é compreensível que se procure evitar essa reflexão. No entanto, a possibilidade de reparar um erro cometido, através do acto de contrição, permite uma consciência alargada dos próprios limites, e dos outros. E assim, uma vivência mais livre e consciente.
Não está aqui em causa a evidência de que cada criança (e cada família) é um caso particular, em todos os sentidos, e que deve ser tratada como tal. Neste sentido, poderemos considerar que cada criança apresenta um registo emocional e comportamental distinto, podendo efectivamente colocar desafios aos pais e educadores, que nem sempre serão de fácil resolução para qualquer uma das partes.
No entanto, um outro significado implícito à frase do título, é o de que “ele/ela é mais forte do que eu”. Ou seja, nas situações em que autoridade parental é solicitada, a figura parental admite a sua incapacidade para fazer vigorar os seus deveres enquanto pai, e cede ao desejo/vontade da criança. Ainda que doloroso, talvez fosse mais honesto admitir que "ele/ela leva-me ao limite", ou que, por vezes "já não sei o que fazer". É algo difícil de admitir, mas é, ainda assim, um princípio para uma possível mudança.
Naturalmente, não se trata aqui de frustrar todos e quaisquer desejos da criança. Todavia, será importante reflectir, do ponto de vista dos pais, em que medida é que determinados desejos da criança põem em causa as regras da família, as rotinas quotidianas, e acima de tudo, o seu bem estar e o dos próprios pais. Em que medida é que, ao evitar frustrar a criança, não poderão estar a contribuir para a fantasia infantil de que todos e quaisquer desejos podem ser satisfeitos magicamente, sem qualquer percalço. E assim sendo, como reagirá esta criança, no seu percurso de vida, quando se deparar com obstáculos aos seus desejos.
Por fim, é importante esclarecer que não se pretende de modo algum condicionar a autonomia, ou a liberdade, da criança, mas convém lembrar que a autonomia e a liberdade se referem a um sentido de lei individual e interno. Por outras palavras, o caminho para uma vivência autónoma passa pela interiorização de regras de convivência com os outros, mas também consigo próprio. E que toda e qualquer pessoa, sem excepção, tem limites, internos e externos, aos seus próprios desejos.
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