Já passaram alguns dias desde o choque causado pelo conhecimento público, de um "jogo" denominado "baleia azul", o qual encontra as suas vítimas através das "redes digitais". Esta descoberta desencadeou um frenesim de busca de informação, com diversos técnicos da área da saúde mental a emitirem o seu parecer. Em paralelo, surgiram reportagens "exclusivas" com as vítimas, alegadamente com o propósito de tornar o seu testemunho público, e às quais se colou o rótulo de "especialmente vulneráveis".
A vulnerabilidade que tem sido alegada como a justificação para aqueles que se tornaram vítimas baseia-se, no pressuposto de que estas pessoas têm um défice de auto-estima, estabelecendo assim uma relação de causa-efeito que parece ser aceite pelo público em geral. Ao mesmo tempo, o rótulo da vulnerabilidade tem servido para diferenciar as vítimas dos demais (aparentemente, serem vítimas não é diferenciação suficiente).
Esta explicação para o "porquê" de alguns serem vítimas parece, à primeira vista, aceitável. No entanto, cria uma percepção simplista sobre aqueles que se tornaram vítimas, assim como sobre o próprio fenómeno "baleia azul".
O problema individual e colectivo que a "baleia azul" coloca, não se reduz a vulnerabilidades pessoais. Pelo contrário, ainda que possamos discernir diferentes graus de vulnerabilidade, em certa medida, a larga maioria de nós encontra-se hoje vulnerável, exposto. A exposição é, de resto, a palavra-chave desta questão. Todos nós, praticamente sem excepção, encontramos-nos expostos, em todos os lugares e a todos os momentos, tal é a difusão dos meios digitais. O problema prende-se assim, com as fronteiras da privacidade e da intimidade, as quais se encontram muito esbatidas.
Não é difícil chegar à conclusão que a privacidade é hoje um bem desvalorizado. Reservar-se, abster-se, resguardar-se, são atitudes olhadas com desconfiança. Já a exposição, senão mesmo o exibicionismo, o "ter algo a mostrar", ter algo a dizer, independentemente do conteúdo, são atitudes altamente valorizadas. O instinto voyeurista de cada um de nós já não precisa de passar pelo duvidoso acto de "espreitar pelo buraco da fechadura". Basta, de forma muito higiénica, ligar a televisão num qualquer reality-show, ou simplesmente deslizar pelo Facebook.
O problema de ordem psicológica que esta situação nos coloca, prende-se, intimamente, com a construção da identidade. Para uma larga maioria, a presença nas redes sociais faz hoje parte da identidade pessoal. Praticamente tudo se partilha "no momento", desde as viagens "a dois", às birras do filho mais novo, passando por aquilo que se come, e não menos importante, partilhando aquilo que se está a sentir, (independentemente do sentimento). A presença digital chega mesmo a preceder o acontecimento real e concreto - se não está na net, não aconteceu.
No caso dos jovens, a exposição nas redes digitais enreda-se, talvez de forma mais evidente, com o seu desenvolvimento pessoal e identitário - ser depende de ser observado, em todos os lugares, e a todos os momentos. Mas algo se perde. Quando as fronteiras da intimidade se esbatem, a auto-estima enfraquece, pois perde profundidade. Em certa medida, depende em demasia da exposição, de ser visto, do número de "gostos", do número de "cliques" - é um processo aditivo.
Um passo importante no desenvolvimento psicológico, prende-se com a percepção, no bebé, de que a mãe é um ser separado. Ou seja, que esta não está sempre presente para satisfazer os seus desejos e necessidades. Um outro passo importante, para a construção da auto-estima, é a percepção de que, apesar de ausente, essa mesma mãe irá voltar (em tempo útil) para oferecer tudo aquilo que uma mãe pode oferecer ao seu bebé. É nesta dinâmica de aproximação e afastamento, de se sentir gostado e momentaneamente sozinho, que se funda uma parte importante da identidade e da auto-estima.
O fenómeno "baleia azul" não poderia ter sucedido noutra época, pois alimenta-se de vulnerabilidades básicas do ser humano, que se está a adaptar à existência digital. Mas não se alimenta apenas de alguns de nós. Todos estamos sujeitos, em certa medida, à "baleia digital".
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