A sociedade da informação desacredita qualquer forma de confiança. A confiança permite travar relações com os outros, ainda quando não os conhecemos demasiado bem. A possibilidade de uma aquisição de informações fácil e rápida lesa gravemente a confiança. Nesse sentido, os media são responsáveis pela crise atual de confiança.
Byung-Chul Han, No Enxame: Reflexões sobre o Digital
O exercício da disciplina pressupõe um dispositivo que coaja por meio do olhar; um aparelho no qual as técnicas que permitem ver induzam efeitos de poder, e no qual em contrapartida, os meios de coerção tornem claramente visíveis aqueles sobre os quais se exercem.
Michel Foucault, Vigiar e Punir
A sociedade da exposição em que vivemos, coloca constantemente o indivíduo em causa - a sua confiança, a sua liberdade, a sua consciência, a sua intimidade. O valor da privacidade (condição essencial para o indivíduo sentir) tornou-se amplamente relativo. A intimidade parece ser um termo que já não se aplica, que não faz sentido - tudo se expõe, tudo se vê de forma deliberada, ainda que não consciente. Na sociedade em que tudo se vê, é difícil definir limites, fronteiras - entre o privado e o público, entre o eu e os outros. Na sociedade da informação e dos ecrãs, desenvolveu-se uma economia da exposição, e do oportunismo de observar os outros na sua intimidade, mesmo que aparentemente consentida.
O programa Super Nanny leva a um novo limite uma das características mais marcantes da sociedade da era digital: a possibilidade de ver sem ser visto. No programa, podemos agora ver famílias, e as suas crianças, em diferentes momentos do quotidiano, no interior dos seus lares. E temos, aparentemente, justificações para esta intromissão na vida privada: o próprio programa, no seu genérico, apresenta as palavras-chave SOS Famílias, sendo assim uma espécie de nobre tábua de salvação; e, dizem-nos, procura ser útil para outras famílias que estejam a passar pelas mesmas dificuldades, numa perspectiva pedagógica.
A Super Nanny, protagonizada pela psicóloga Teresa Paula Marques, entra em casa de famílias que se encontram a braços com a exigente tarefa de educar e ajudar os seus filhos a crescer, e que procuram uma ajuda especializada. Partindo deste pressuposto, acompanhamos a Super Nanny enquanto esta presencia diversos momentos da intimidade da família - as refeições, a hora do banho, a hora de deitar - e podemos então, no conforto do lar, avaliar a perturbação que parece ocorrer na família em questão. Presenciamos o desespero de pais e filhos, as agressões verbais e corporais - os gritos, o choro, a raiva, a tristeza. Entretanto, a Super Nanny (personagem na qual nada é deixado ao acaso) ajeita os óculos com ar professoral, e olha para a câmara com ar cúmplice, convidando-nos a ajuizar o que estamos a presenciar - no limite da caricatura, a Super Nanny encontra-se à porta, semi-aberta, da casa de banho, e confidencia para o espectador, num tom de reprovação, que a mãe está a dar banho à filha.
Tudo neste programa atenta contra a intimidade e desenvolvimento das crianças, assim como dos pais. Os alegados propósitos nobres do programa falham redondamente devido ao dispositivo que rodeia o processo de intervenção. Para a Super Nanny, a intervenção não depende de uma relação de confiança, construída num espaço e tempo seguros. Esta apresenta-se a estas famílias em dificuldades, como uma especialista que tem o poder e o direito de conhecer e presenciar a sua intimidade. A presença do olhar sem rosto das câmaras acresce ao poder da Super Nanny, a qual tem o aval tácito do espectador (nas cenas do próximo episódio, vemos um jovem visivelmente frustrado, a passar frente à câmara, e a fechar uma porta, por meio a ter um mínimo de privacidade, algo que o proteja do olhar intrusivo da câmara). Quanto à intervenção, esta tem um sentido de eficácia, de mudança protocolizada - apresentam-se técnicas e estratégias, e a criança deverá então ser coagida a mudar os seus comportamentos, como se de uma receita se tratasse, sem qualquer tipo de trabalho que incida sobre a qualidade relação pai-filho. Não existe crescimento ou ganho de consciência. O trabalho com os pais é praticamente nulo, não há tempo para a mudança interna, consciente - apenas uma posição de submissão a uma personagem imbuída de poder mediático. De notar que Teresa Paula Marques afirma que não se apresenta no programa como psicóloga. Psicóloga ou não, a exposição privilegiada serve-lhe, mesmo que para isso atropele a dignidade das pessoas que alega querer ajudar.
Entretanto, e apesar da onda de indignação e das críticas de várias entidades, a estação de televisão SIC, assim como a produtora do programa, comunicaram que não tencionam cancelar o programa. Alegam, entre outros argumentos, que nos diversos países onde o programa já foi transmitido:
"...os padrões de proteção dos direitos dos menores não se revelam menos exigentes do que os existentes em Portugal. A experiência acumulada nesses países tem demonstrado que o SuperNanny não gera efeitos negativos ou de censura em ambiente escolar e social, antes contribuindo para uma melhoria significativa da qualidade de vida familiar".
Será de supor que estas conclusões se baseiam em estudos comparativos aprofundados entre os diversos países, e mesmo em estudos de folllow-up relativamente às intervenções realizadas no programa. Como é evidente no texto que apresentaram, a estação de televisão e a produtora do programa encontram-se em posição privilegiada e de grande poder. São entidades com grande capacidade de influência, sem rosto, sem responsabilidade. Privilégios que não são estendidos às famílias e às crianças que servem o programa e o propósito de subir as audiências.